27 de agosto de 2012

TEXTO LITERÁRIO E TEXTO NÃO-LITERÁRIO

A linguagem poética é constituída por uma estrutura complexa, pois acrescenta ao discurso linguístico um significado novo, surpreendente, alusivo. Além disso, o signo artístico não possui, como na língua comum, um caráter convencional e arbitrário, mas sua essência é a “iconicidade”, a capacidade de estabelecer uma configuração entre significante e significado, de semantizar os elementos e as relações do sistema semiótico natural.

Consequência da complexidade da estrutura poética é sua polivalência; o poético apresenta-se como um feixe de possibilidades significativas, instaurando um processo de semiose ilimitada, pois encerra em seu núcleo sêmico a co-ocorrência dos dois pólos de uma oposição. A conjunção e a disjunção de elementos contrários encontram-se simultaneamente, coexistem na estrutura poética: “o signo poético simultaneamente remete e não remete a um referente; ele existe e não existe; é, ao mesmo tempo, um ser e um não ser. A poesia enuncia a simultaneidade (cronológica e espacial) do possível com o impossível, do real e do ‘fictício’” (Kristeva em Almeida, 2).

A linguagem poética procura alcançar as raízes naturais do processo simbólico, ainda na fase de interrogação, e não de resposta, aos anseios da comunicação inter-humana. No discurso poético, assim como no discurso infantil, um significante não corresponde perfeitamente ao significado arbitrariamente estabelecido pelo uso linguístico e vice-versa: um significado pode ter um significante diferente do normal.

Sua função, mais do que referencial, é essencialmente expressiva, pois confere um novo sentido às palavras. Roman Jakobson, já nas Teses de 1929, que deram início ao movimento chamado de formalismo russo, ditava a norma da arte em geral: “o princípio organizador da arte, em função do qual ela se distingue das outras estruturas semiológicas, é que a intenção é orientada não para o significado, mas para o próprio signo”.

Podemos afirmar que a natureza da linguagem literária faz com que toda obra de arte poética apresente a intersecção de dois movimentos opostos e, ao mesmo tempo, complementares: um, que a dobra sobre si mesma, em mero objeto de linguagem, fenômeno que Lefebvre (34, p.39-42) chama de “materialização do significante”; outro que, ao contrário, a abre para o mundo, interrogado em sua realidade e em sua presença essencial (fenômeno da “presentificação do significado”).



1 CONOTAÇÃO


A linguagem literária, por ser um sistema semiótico secundário que tem como significante o sistema linguístico, constitui-se num discurso conotado, porque seu plano de expressão já inclui uma significação primária.

O termo conotação deve ser reservado para sentidos de uma palavra ou de uma expressão que podem existir virtualmente na experiência que temos da coisa designada por essa palavra, ou nas associações que nascem do uso que se faz dessa palavra na linguagem em geral, mas que só se atualizam por seu emprego particular num certo discurso. A conotação é um sentido que só advém à palavra numa dada situação e por referência a um certo contexto (Lefebvre, 334, p.58).


É preciso distinguir a conotação poética, ou artística em geral, da conotação de outros sistemas semióticos: a da linguagem jurídica, médica, diplomática, dos marginais, gíria, etc. O sentido conotativo dessas linguagens, uma vez descoberto seu código, torna-se denotativo, porque é unívoco. A linguagem literária, pelo contrário, é sempre polissêmica, ambígua, aberta a várias interpretações. Essa ambiguidade não atinge apenas a mensagem em si, mas também o emissor (ambiguidade entre autor e eu poemático), o destinatário (ambiguidade entre receptor textual e virtual), o referente (ambiguidade entre realidade material e realidade ficcional).

O texto literário transforma incessantemente não só as relações que as palavras entretêm consigo mesmas, utilizando-as além de seus sentidos escritos e além da lógica do discurso usual, mas estabelece com cada leitor relações subjetivas que o tornam um texto móvel (modificante e modificável), capaz mesmo de não conter nenhum sentido definitivo ou incontestável.


Consequência do caráter conotativo da linguagem literária é que, para a inteligibilidade ou decodificação de um texto poético, não é suficiente apenas o conhecimento do código linguístico. Há necessidade do conhecimento de uma pluralidade de códigos: retóricos, místicos, culturais, etc., que estão na base da estrutura artístico-ideológica de uma obra literária. “Essa forma de vida que é ‘a língua’ está sempre e necessariamente inserida em situações sócio-culturais e abarca ‘formas de trabalho’ linguísticas e não-linguísticas, que se interpretam mutuamente” (114, p.154).

Na linguagem científica e diária faz-se largo uso de estereótipos, seguindo padrões linguísticos e petrificando a palavra. O cientista e o homem comum não pensam no código que utilizam: o uso linguístico cria automatismos psíquicos e intelectuais que levam à perda do sentido do significante. A força da repetição aniquila o significado original da palavra, que perde seu poder de criatividade.

A linguagem poética insurge-se contra o automatismo e a estereotipação do uso linguístico, reavivando arcaísmos, criando neologismos, inventando novas metáforas, ordenando de um modo diferente e surpreendente os lexemas no sintagma. Os signos poéticos, mais do que expressar conceitos, carregam representações sensoriais, através da metrificação, da rima, da assonância, do ritmo, da sinestesia.

Para os formalistas russos[1], a linguagem poética se caracteriza pelo poder da singularização, pois usa o método da representação insólita: os objetos são descritos como se desconhecidos, como se vistos pela primeira vez, deformados de suas proporções habituais.

Em suma, o poeta produz uma linguagem que, mesmo usando palavras comuns, recria essas palavras para tornar possíveis relações sempre novas com a realidade. Daí o efeito surpreendente, fascinante, fantástico da linguagem e da cosmovisão artísticas. Refletir nas palavras leva, consequentemente, a pensar no sentido que as palavras encerram.





2 ESTRUTURAÇÃO



O caráter a-normativo da linguagem poética tem levado uma ala da crítica literária, especialmente a ligada à estilística (Vossler, Croce e outros), a considerar a arte como intuição lírica e expressão de uma personalidade individual e subjetiva. Se a criação poética, segundo essa teoria que tem sua origem remota na concepção platônica da arte, é produto da inspiração de um gênio que em determinados momentos e em estado de graça intui e expressa artisticamente supra-realidades, implicitamente se nega à obra literária a capacidade de ser estruturada e, portanto, compreendida objetivamente.



Por mais que o poeta seja obrigado e consiga violentar a norma linguística para poder expressar a inefabilidade de seu mundo interior, é sempre possível individualizar no produto de sua criação, no texto literário, seus elementos constitutivos e as relações entre estes elementos. Ao desvio criado pela função metafórica da linguagem literária deve corresponder a possibilidade da correção desse desvio, sob pena de o texto ser incompreensível. Se o artista se fechasse por completo em seu mundo interior e se desviasse do código linguístico de uma forma irreversível, ultrapassando o umbral da inteligibilidade, a arte perderia sua função comunicativa. A qualidade da obra de arte reside no limite entre a banalidade e o absurdo.


A literariedade de um texto reside, portanto, não no fato de ser estruturado, mas na especificidade de sua estrutura ou, como preferem os formalistas, no priom ou processo pelo qual os materiais linguísticos, culturais e ideológicos são organizados e adquirem forma de arte.



3 FICCIONALIDADE

A literatura é chamada de ficção, isto é, imaginação de algo que não existe particularizado na realidade, mas no espírito de seu criador. O objeto da criação poética não pode, portanto, ser submetido à verificação extratextual. A literatura cria o seu próprio universo, semanticamente autônomo em relação ao mundo em que vive o autor, com seus seres ficcionais, seu ambiente imaginário, seu código ideológico, sua própria verdade: pessoas metamorfoseadas em animais, animais que falam a linguagem humana, tapetes voadores, cidades fantásticas, amores incríveis, situações paradoxais, sentimentos contraditórios, etc. Mesmo a literatura mais realista é fruto de imaginação, pois o caráter ficcional é uma prerrogativa indeclinável da obra literária. Se o fato narrado pudesse ser documentado, se houvesse perfeita correspondência entre os elementos do texto e do extratexto, teríamos então não arte, mas histórica, crônica, biografia.

A obra literária, devido à potência especial da linguagem poética, cria uma objetualidade própria, um heterecosmo contextualmente fechado. Essa realidade nova, criada pela ficção poética, não deixa de ter, porém, uma relação significativa com o real objetivo. Ninguém pode criar a partir do nada: as estruturas linguísticas, sociais e ideológicas fornecem ao artista o material sobre o qual ele constrói o seu mundo de imaginação. A teoria clássica da arte como mimese da vida é sempre válida, quer se conceba a arte como imitação do mundo real, quer como imitação de um mundo imaginário.

Observe na tabela abaixo a exposição de algumas características que diferenciam o Texto Literário do Texto Não-literário.


Texto Literário
Texto Não-literário
Compartilha sentimentos com o receptor, expondo a visão de mundo do emissor.Compartilha informações, expondo uma visão geral acerca de determinado assunto.
Linguagem subjetivaLinguagem objetiva
Valorização da estética e da musicalidade.Valorização da clareza e da coerência.
Visão voltada para o “eu”, o universo interior do emissor.Visão voltada para o “nós”, o universo exterior que circunda o emissor.
Plurisignificação.Significado único.


Um exemplo de texto literário é o poema Mistérios, de Florbela Espanca. Leia-o abaixo.



    MISTÉRIOS

(Florbela Espanca)



Gosto de ti, ó chuva, nos beirados,
Dizendo coisas que ninguém entende!
Da tua cantilena se desprende
Um sonho de magia e de pecados.

Dos teus pálidos dedos delicados
Uma alada canção palpita e ascende,
Frases que a nossa boca não aprende,
Murmúrios por caminhos desolados.

Pelo meu rosto branco, sempre frio,
Fazes passar o lúgubre arrepio
Das sensações estranhas, dolorosas…


Talvez um dia entenda o teu mistério…
Quando, inerte, na paz do cemitério,
O meu corpo matar a fome às rosas!


Considere também como exemplo de texto literário a poesia moderna de Chico Burque. Na música Ode aos Ratos, ao contrário do que sugere o título da obra, faz-se uma crítica social sobre as condições a que são submetidos os garotos de rua.




[1] Veja, especialmente, o artigo de V. Chklovski, “L’art comme procede”, em Sur la théorie de la prose, onde, à página 22, se encontra sua definição da imagem poética. Criticando Potebnia, Chklovski afirma: “A imagem não é o sujeito permanente de predicados variáveis. A imagem não é feita para tornar a significação de um objeto mais acessível a nossa compreensão, mas para nos dar do objeto uma percepção original, para fazê-lo ‘ver’ em lugar de fazê-lo ‘reconhecer’”.



Referências Bibliográficas
AMARAL, Emília. et. all. Novas Palavras: Literatura, Gramática, Redação e Leitura. Vol. 1. São Paulo: FTD, 1997.
AMARAL, Emília. et. all. Novas Palavras: Literatura, Gramática, Redação e Leitura. Vol. 2. São Paulo: FTD, 1997.
BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 2006.
CÂNDIDO, Antônio. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007.
D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto I. São Paulo: Ática, 1995.
GOLDSTEIN, N. Versos, sons e ritmos. São Paulo: Ática, 2007.
MOISÉS, M. A criação literária: prosa I. São Paulo: Cultrix, 2003.
 _________. A criação literária: poesia. São Paulo: Cultrix, 1998.
Print Friendly and PDF

2 comentários: