19 de agosto de 2012

POESIA

A palavra “poesia vem do grego poiesis: criar, no sentido de imaginar”. “Os Latinos chamavam a poesia de oratio vincta: língua travada, ligada por regras de versificação, em oposição a oratio prorsa: linguagem direta e livre. Prorsa tornou-se, por metáfase, prosa[1]”. No geral, baseavam a distinção entre a poesia e a prosa no fato de a primeira exprimir-se em versos, e a segunda não. Contudo, por vezes fugiam de radicalizar sua posição e acercavam-se de uma identificação menos exterior, como se pode ver em Quintiliano, ao asseverar (Instituto Oratoriae, X, 1, 89) que “Cornélio Severo foi melhor versificador que poeta” (versificator quam poeta melior). Importa assinalar que Aristóteles já tinha nítida consciência das características profundas da poesia, que a tornavam diversa da prosa e da historiografia.

Assim, a poesia tem por objeto o “eu” (enquanto a prosa, o “não-eu”), de modo que o “eu”, que confere o ângulo do qual o artista “vê” o mundo, se volta para si próprio. “Para o poeta, somente há um centro: ele”; “ele apenas está atento aos liames que o relacionam com o mundo, e faz de sua subjetividade o objeto essencial de suas investigações”; “a atitude do poeta é pois uma atitude de debruçamento sobre si próprio, uma atitude contemplativa não sem analogia com a do filósofo. Mas o filósofo contempla idéias gerais, absolutas, infinitas. O poeta contempla idéias particulares, subjetivas, e entretanto, em certo sentido, universais” e verdadeiras; “uma verdade e uma universalidade que se podem qualificar como a verdade e a universalidade do subjetivo”[2]. Portanto, o “eu” descreve uma curva e regressa ao ponto de partida, o próprio “eu”.



Mas é também do caráter especial assumido pela palavra poética que decorre um dos componentes básicos do fenômeno poético: o ritmo. Entendido não como necessária repetição dum movimento ou duma duração (como querem as perceptivas literárias tradicionais), mas como expressão daquilo que no mundo interior do poeta é permanente movimento em espiral, como uma sequência de sons, de sentidos e de sentimentos, uma sequência ao mesmo tempo musical, semântica e emotiva.

Leia a obra Trem de Ferro, de Manuel Bandeira, e analise o modo como sua estruturação induz a uma leitura ritmada como a velocidade do meio de transporte que nomeia o poema. Não deixe de observar que a aproximação sonora com os movimentos do trem em curso é o que possibilita a musicalidade poética, obtida através de recursos como a aliteração (repetição de elementos fônicos: fumaça, fogo, força, etc.) e a assonância (repetição da vogal tônica ou de palavras com consoantes iguais e vogais diferentes: agora, corre, bota; poste, pasto, etc.). Não obstante, a direção do trem é o que orienta a versificação, pois quando ele está "indo" afloram trissílabos que possibilitam a leitura veloz; e quando ele está "em descida" emergem quadrissílabos e pentassílabos.
 
TREM DE FERRO
(Manuel Bandeira)
 
Café com pão
Café com pão
Café com pão

Virge Maria que foi isso maquinista?

Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força
(trem de ferro, trem de ferro)

Oô...
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
Da ingazeira
Debruçada
No riacho
Que vontade
De cantar!
Oô...
(café com pão é muito bom)

Quando me prendero
No canaviá
Cada pé de cana
Era um oficiá
Oô...
Menina bonita
Do vestido verde
Me dá tua boca
Pra matar minha sede
Oô...
Vou mimbora vou mimbora
Não gosto daqui
Nasci no sertão
Sou de Ouricuri
Oô...

Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente...
(trem de ferro, trem de ferro)
 
Se julgar necessário, interessante, ou ambos, veja um trecho de Trem de Ferro sendo narrado num dos episódios do programa Castelo Rá Tim Bum, da TV Cultura:



Ou ouça as manifestações musicais inspiradas em Trem de Ferro:





Ao sistema harmônico de palavras (metáforas e termos de ligação) através das quais o “eu” do poeta se expressa em seu conteúdo e em seu intrínseco ritmo, dá-se o nome de poema. Portanto, o poema seria a tentativa empreendida pelo poeta no sentido de representar seu mundo interior: uma súmula de sinais, de metáforas. Evitemos, porém, considerar poema a parte gráfica, meramente exterior. Do contrário, seríamos levados a considerar inerentemente ao poema o que não lhe pertence. Resultado: o poema não é a sua apresentação formal, gráfica, é, sim, a soma dos signos mediante os quais o poeta procura comunicar-se.



[1] Jean Suberville, Théorie de I’Art et dês Genres Littéraires, 7ª ed., Paris, Les Éditions de I’École [1964], p.227.
[2] Henri Bonnet, Roman et Poésie, Paris, Nizet, 1951, p.96.


Referências Bibliográficas
AMARAL, Emília. et. all. Novas Palavras: Literatura, Gramática, Redação e Leitura. Vol. 1. São Paulo: FTD, 1997.
AMARAL, Emília. et. all. Novas Palavras: Literatura, Gramática, Redação e Leitura. Vol. 2. São Paulo: FTD, 1997.
BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 2006.
CÂNDIDO, Antônio. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007.
D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto I. São Paulo: Ática, 1995.
GOLDSTEIN, N. Versos, sons e ritmos. São Paulo: Ática, 2007.
MOISÉS, M. A criação literária: prosa I. São Paulo: Cultrix, 2003.
 _________. A criação literária: poesia. São Paulo: Cultrix, 1998.
Print Friendly and PDF

0 comentários:

Enviar um comentário