5 de agosto de 2012

Literatura: Noções Gerais

O vocábulo “literatura” provém do latim litteratura, que por sua vez deriva de littera, ae e significa o ensino das primeiras letras. Com o tempo a palavra ganhou sentido de arte das belas letras, ou arte literária. Nessa acepção, e substituindo os vocábulos belles lettres, “poética” e “poesia”, o termo “literatura” definiu-se na segunda metade do século XVIII, contemporaneamente à Revolução Industrial, contra que reagiu, e à liberalização das Artes, com a qual se identificou, por meio do culto da imaginação[1]. Na centúria seguinte passou a ser universalmente empregado.

Como se observa, desde as origens a Literatura subordinou-se à letra escrita e depois impressa. Tal observação nos arremessa de imediato no problema da chamada literatura oral: na verdade, somente procede falar em Literatura quando possuímos documentos escritos ou impressos. Ao contrário do que possa parecer, não existe uma atividade literária oral, paralela, quando não oposta à atividade que se exerce por escrito. A rigor, trata-se de transmissão, de comunicação oral do texto literário escrito ou impresso: depois que este surge, é que se processa a sua manifestação em voz alta. Antes da existência do documento escrito ou impresso, toda obra no gênero ainda não constitui arte literária, a não ser embrionária ou virtualmente, e pertence mais ao Folclore, à Antropologia, etc., que aos estudos literários. Portanto, se não tivermos o texto diante de nós, estamos impossibilitados de realizar o nosso ofício de leitores ou críticos. Produzido o texto, já é possível submetê-lo ao tratamento que merece. Do mesmo modo, se a comunicação oral se realiza após a elaboração do texto, apenas podemos examiná-la do prisma do intérprete, não do texto em si. Por outras palavras, o vocábulo “oral” designa um mecanismo de comunicação, não a natureza do objeto literário[2]; este, assume a sua identidade quando se produz num texto escrito ou impresso. Neste caso, o termo “escrito” ou “impresso” não assinala o mecanismo de comunicação, mas a própria condição da entidade chamada “texto”.

A importância desse fato não passa despercebida aos estudiosos do assunto, alguns dos quais chegam a propor que a noção de Hermenêutica deva ser de novo equacionada, simplesmente porque se trata de interpretação de textos (escritos, impressos) e não de linguagem falada: “até que pondo podemos considerar a noção de texto como bom paradigma para o assim chamado objeto das Ciências Sociais?”; e “até que ponto podemos empregar a metodologia da interpretação textual como paradigma para a interpretação em geral no campo das Ciências Sociais?”[3]

Assim se compreende que os estágios pré-documentais duma literatura não podem ser levados em conta, como, por exemplo, a fase anterior a 1198 ou 1189, data em que Paio Soares de Taveirós compôs sua cantiga de amor para Maria Pais Ribeiro, favorita de D. Sancho I, cantiga essa que tem sido considerada o primeiro documento da história da Literatura Portuguesa. Nem podem merecer consideração poemas ditos mas não reduzidos a termo pelo autor, como aconteceu a Camilo Pessanha. E nem podem ser consideradas como tendo literatura as comunidades destituídas de escrita ou que deixaram de registrar seu acervo lendário e mítico como, por exemplo, os indígenas brasileiros. Pois não temos outro jeito de conhecer uma obra literária sem que esteja transcrita no papel, com vistas à leitura. Na verdade, quando falamos em obra literária pensamos num objeto concreto, palpável, e não numa sequência de massas sonoras. Por mais generosa que seja a idéia romântica duma literatura oral, popular, esta não passa de folclore, e só adquire status literário quando escrita, pelos próprios autores ou pelos interessados na matéria; em suma, quando oferecida à leitura. Esta é, inquestionavelmente, a primeira condição para que uma obra possua caráter literário[4].

Por certo, é possível dizer que um “desafio” de cantadores nordestinos, ou uma composição de qualquer poeta repentista ou improvisador, encerra conteúdo literário, mas somente cabe levá-lo em consideração (criticamente falando) quando transposto para o papel. Supondo, porém, que o crítico interessado no assunto se limitasse a ouvir um sem número de vezes a cantiga do bardo popular, até imprimi-la na memória, ainda assim permaneceria a situação original. Vale dizer: ao procurar o entendimento e o julgamento da peça oral, o crítico teria fatalmente de transcrevê-la, em sua totalidade ou não, desse modo reduzindo à letra as palavras conhecidas por meio da audição. Nesse momento, e apenas nesse momento, a obra passaria a integrar a literatura, sem embargo de continuar interessando ao folclorista, ao etnólogo, etc. Em último lugar, impõe-se não perder de vista o seguinte fato: quando se fala em Literatura Brasileira, Portuguesa, Inglesa, Francesa, etc., está-se pensando num conjunto de obras produzidas por escritores brasileiros, portugueses, ingleses, franceses, etc., ao longo dos séculos: uma literatura é constituída pela soma de livros, opúsculos, revistas, enfim, textos impressos, e não pelas manifestações (literárias) que deixaram de ser convertidas em letra, de fôrma ou não.

Nos dias que correm, a noção “texto” ampliou-se um pouco, graças aos recursos plásticos e eletrônicos postos ao alcance do público. Assim, os poemas inscritos em cartazes (posters) ou gravados em disco, em fita ou em slides, por certo que se enquadram na categoria de textos, pois permitem e pressupõem a leitura, embora um tanto diversa da que oferece a página convencional. Nesses casos, processou-se tão somente a substituição do instrumento de registro, visto que persiste a condição básica: documentos “escritos”, visual ou oralmente transmitidos, destinados a “leitura”.

Mas fujamos de confusões: se a obra literária pressupõe a leitura, nem todo texto escrito se classifica como literário. Pois foi um equívoco nesse plano de noções óbvias que deu origem ao emprego abusivo da palavra “Literatura”. Como qualquer texto impresso necessariamente se destina à leitura, entrou-se a considerar como literário tudo quanto ganhava a letra de fôrma. Assim, fala-se em “literatura farmacêutica”, “literatura filosofante”, “literatura médica”, “literatura política”, “literatura automobilística”, etc., etc. Trata-se, evidentemente, da deturpação do sentido da palavra, mercê de seu caráter original, a letra escrita[5]. Nesses casos, sabemos que o mal-entendido não é fácil de extirpar, em consequência de ser mais profundo do que parece o preconceito contra a seriedade da Literatura, e mesmo a consciência duma crise interna dos valores literários. Bastava empregar o vocábulo “bibliografia” e o problema estaria resolvido de todo.

Se a confusão persiste, é porque o hábito já deitou fundas raízes (em decorrência, certamente, do próprio sentido etimológico do termo “Literatura”), e denuncia uma problemática de vastas proporções, fora e dentro dos quadros literários. Encarando mais de perto estes últimos, verifica-se dede a primeira metade deste século uma espécie de pânico ou desencanto em relação à Literatura, que teve início na “crise do conceito de literatura” e passou por uma série de transes marcados por correspondentes fórmulas diagnosticadoras do mal em causa: “atitude maldita”, “homem em processo”, “homem rebelado”, “rebelião dos escritores”, “homem acossado”, “terror” na literatura, “homem em exílio”, “Literatura em estado selvagem”, “Literatura em dissolução”, “metamorfose da Literatura”, Literatura como “tomada de consciência”, Literatura como dissidência, morte da Literatura[6]. Dir-se-ia que nos próprios arraiais literários grassa desalento e ceticismo, quem sabe porque, além do mais, muitos percebam com lucidez estarem comprometidos numa campanha inócua: a que pretende seja a Literatura considerada uma forma de conhecimento tão válida quanto as demais. Ou decorre de sentirem que a Literatura se ausentou da realidade nossa contemporânea, aos poucos ganhando condição de flor de estufa ou de corpo estranho num mundo agitado por incalculáveis metamorfoses tecnológicas? Estas e outras questões demandariam longa análise, que, porém, extrapola dos limites deste livro. O leitor curioso de adentrar essa problemática se beneficiará da leitura das obras de Raul Castagnino e Guillermo de Torre citadas em nota de rodapé.

Em definição do Dicionário Aurélio, literatura é:

1. Arte de compor ou escrever trabalhos artísticos em prosa ou verso.

2. O conjunto de trabalhos literários dum país ou duma época.

3. Os homens de letras. (Autores)

4. A vida literária.

5. A carreira das letras.

6. Conjunto de conhecimentos relativos às obras ou aos autores literários.

7. Qualquer dos usos estéticos da linguagem.

8. Irrealidade, ficção.

9. Bibliografia.

10. Conjunto de escritos de propaganda de um produto industrial.






[1] Alvin B. Kernam, “The Idea of Literature”, New Literary History (University of Virgínia) [“A Idéia de Literatura”, Nova História Literária], vol. V, n° 1, outono 1973, PP.31 e SS.
[2] O vocábulo “oral” ainda é tomado na acepção de “popular” ou “folclórico”, em oposição a “erudito”. Mesmo assim somente cabe o emprego da expressão “literatura oral” para os textos escritos ou impressos de extração popular, não para a sua divulgação anterior ou posterior a eles (cf. Luís da Câmara Cascudo, Literatura Oral, Rio de Janeiro, José Olympio, 1952). V. Robert Kellogg, “Oral Literature”, in New Literary History, n° cit., PP. 55 e SS.
[3] Paul Ricoeur, “The Modelo of the Text: Meaningful Action Considered as a Text” [“O Modelo do Texto: Ação Significativa Considerada Como Um Texto”], in New Literary History, n° cit., p.91.
[4] Alfonso Reyes, em seu livro Deslinde, Prolegómenos a la Teoría Literaria (México, El Colegio de México, México [1944], p.23), valioso a tantos respeitos, defende opinião radicalmente antagônica: “A rigor, [a literatura é] oral por essência (e não só por sua origem genérica), visto que o caráter gráfico se refere à palavra falada e nela sobra sentido, e a palavra só é escrita por acidente, para ajuda da memória”.

E Richard Chase é ainda mais enfático: para ele, “não há povo que não tenha literatura”. A idéia, entre generosa e reveladora dum profundo e louvável respeito pela atividade literária, funda-se nos estudos antropológicos de Franz Boas, segundo os quais “histórias e canções se encontram por toda a parte”; “o pobre caçador da península malaia e os australianos têm sua literatura, não menos que os povos economicamente avançados. (...) Há formas fundamentais de literatura entre os povos primitivos”. E acrescenta o professor norte-americano: “a universalidade da literatura primitiva tornou-se conhecida apenas aos relativamente recentes colecionadores de folclore” (Richard Chase “Myth as Literature”, in Myth and Method [“Mito como Literatura”, em Mito e Método], de James E. Miller (ed.), The University of Nebraska Press, 1960, p.129).Parece que se confundem atividades limítrofes mas não idênticas, o Folclore e a Literatura, e está-se conferindo a populações iletradas uma atividade que pressupõe, necessariamente, o ato de escrever (Susanne K. Langer, Feeling and Form, New York, Charles Scribner’s Sons, 1953, PP. 274-278). Mais ainda: a ponderação de Boas vincula-se mais à Antropologia e ao Folclore que à Literatura. Por outro lado, a Estilística ou a Linguística nos fornece, numa obra recente, testemunho abonador do nosso ponto de vista: “a essência do poema está na sua gravação permanente, na escrita. OS avatares físicos de sua execução concreta são comparativamente secundários; a percepção, a decodificação não falada bastam. Passar da percepção à execução oral é uma simples exteriorização (que está sujeita a acidentes físicos ou históricos, como a diferença entre leitores, ou entre o código do leitor e o do texto)” (Michael Riffaterre, Estilística Estrutural, TR. Brasileira, São Paulo, Cultrix, 1973, p.122). Considere-se, ademais, a seguinte observação, em diverso contexto: “Uma civilização não toma consciência de si própria senão através da escrita, assumindo desse modo o sentido da continuidade na crença e projetando à frente sua mensagem, cuja captação é a História” (Jean Pucelle, Le Temps, Paris, PUF, 1962, p.73)[5] Entretanto, desde Aristóteles que a distinção se fazia clara, embora ainda não existisse o termo com que a obra literária veio a ser chamada. Logo à entrada de sua Poética, diz o filósofo: “Se alguém compuser em verso um tratado de Medicina ou de Física, esse será vulgarmente chamado de poeta; na verdade, porém, nada há de comum entre Homero e Empédocles, metrificação, à parte; aquele que merece o nome de poeta, e este o de fisiólogo, mais que o de poeta” (tr. Portuguesa de Eudoro de Sousa, Lisboa, Guimarães [1951], p.68).[6] Raul H. Castagnino, Qué es Literatura?, Buenos Aires, Nova [1954], pp. 20-21. Ver ainda Guillermo de Torre, Problemática de la Literatura, Buenos Aires, Losada [1951].


Refefências Bibliográficas

AMARAL, Emília. et. all. Novas Palavras: Literatura, Gramática, Redação e Leitura. Vol. 1. São Paulo: FTD, 1997.

AMARAL, Emília. et. all. Novas Palavras: Literatura, Gramática, Redação e Leitura. Vol. 2. São Paulo: FTD, 1997.

BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 2006.

CÂNDIDO, Antônio. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007.

D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto I. São Paulo: Ática, 1995.

GOLDSTEIN, N. Versos, sons e ritmos. São Paulo: Ática, 2007.

MOISÉS, M. A criação literária: prosa I. São Paulo: Cultrix, 2003.

_________. A criação literária: poesia. São Paulo: Cultrix, 1998.

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