5 de agosto de 2012

Literatura: Conceito

Não é de hoje que filósofos, estetas, críticos e historiadores vêm procurando conceituar a Literatura dum modo convincente e conclusivo. Entretanto, por mais esforços de clarividência que tenham sido feitos, o problema continua aberto, pelo simples fato de que, nesse particular, somente podemos falar em conceito, nunca em definição. Esta, pertence ao campo das Ciências, e corresponde ao enunciado das características universais e essenciais dum objeto, material ou imaterial. Assim, quando dizemos que “água é uma combinação de duas quantidades de hidrogênio mais uma de oxigênio (H2O)”, estamos dando uma definição, pois os termos do enunciado correspondem à essência do objeto “água” e tão-somente a ele.

Tal definição é ainda universalmente aceita, pois que se baseia no raciocínio, ou melhor, no emprego da Razão. Quanto ao conceito, diz respeito ao caráter acidental ou particular dum objeto, e decorre de impressões mãos ou menos subjetivas. Assim, quando dizemos que “belo é o que agrada”, estamos tentando conceituar o Belo duma forma que procura inutilmente ser universal e essencial. Basta uma análise superficial do enunciado para que se revele incapaz de satisfazer a toda a gente. Tudo que agrada é belo? O que desagrada não pode ser belo? E quando um mesmo objeto agrada a uma pessoa e desagrada a outra?

Desde a Antiguidade Clássica, com Aristóteles, e mesmo com Platão, o problema do conceito de Literatura esteve presente. Para o Estagirita, “a epopéia, a tragédia, e ainda a comédia, a poesia ditirâmbica e a maior parte da aulética e da citarística, todas são, em geral, imitações[1]”. Ou mais sinteticamente, e duma forma como se vulgarizou o pensamento aristotélico: a Literatura é imitação (“mimese”) da realidade. De pronto, duas observações suscita o conceito aristotélico: 1ª) refere-se à poesia, uma vez que a prosa literária (conto, novela, romance, e expressões híbridas) ainda não era cultivada; 2ª) não se pode afirmar que a significação do vocábulo “mimese” esteja definitivamente assentada. Um dos estudiosos do assunto, Alfonso Reyes[2], admite três significados para ela, mas adverte que o terceiro, “apesar de inegáveis vacilações, é o que corresponde à doutrina aristotélica”: 1°) significado vulgar, em que “mimese” se reduz à reprodução do objeto exterior, ao retratismo”, 2°) em que o filósofo “imita o método da criação divina, imita o processo do suceder”, 3°) que se refere “à expressão, por meio da arte, do tipo que o artista tem na alma. É a imitação de uma presença subjetiva”, corresponde à “coerência ou semelhança entre a casa que o arquiteto constrói e a que vislumbra em sua mente”.

Glosado, comentado, refutado, distorcido, o conceito aristotélico predominou até o século XVIII, e nas duas últimas centúrias pode-se dizer que a sua validade intrínseca permaneceu, apesar de/ou graças aos novos instrumentos que vêm sendo empregados no exame da problemática literária[3]. Sobretudo se admitirmos que o vocábulo “mimese” ostenta a terceira significação que o ensaísta mexicano lhe atribui, porquanto ali se declaram duas categorias-chave: “expressão” e “ficção”. Restaria incluir a prosa de ficção e considerar a poesia, ao contrário do que preconizam alguns linguistas e teóricos modernos, não-opaca: entre a opacidade e a transparência se move o fenômeno poético, como tentaremos demonstrar no capítulo que lhe é consagrado, mais adiante. Por outro lado, rechaçar o vocábulo “mimese” sob o pretexto de que 1) “o termo ‘imitação’ pode permanecer relevante apenas perdendo todo o sentido preciso que possa ter; 2) a poesia, além de ser não representativa da realidade externa, é suficiente em si própria”[4], – é incidir no segundo sentido proposto por Alfonso Reyes. Imitação não é cópia, mas recriação, à semelhança de: o poeta cria, com seus meios próprios (a linguagem verbal), um mundo à imagem e semelhança do universo; cria caracteres, afetos e paixões, como se fossem reais, pois não podem ser reais, visto que as inventa ou as exprime vocabularmente.

Os teóricos interessados no deslinde da questão não raro se demoram nos seus aspectos acidentais ou confundem a função da Literatura com a sua natureza. Quando não, pecam por ecletismo ou imprecisão terminológica. Entre os primeiro, são de citar os conceitos de Charles Du Bos e Raul Castagnino. Para aquele, espiritualista e cristão, a Literatura conecta-se com a Alma, a Luz, a Beleza, “é o pensamento acedendo à beleza na luz”, “é encarnação”, “que não se pode produzir senão por intermédio da carne viva das palavras”, de onde “subsistir apenas a expressão no final do processo, expressão pela qual cada palavra é um ato e é a identidade entre a palavra e o ato que faz aceder ao intemporal[5]. Por seu turno, Raul Castagnino procura antes equacionar a função da Literatura que o seu conceito, visto encarar ceticamente “a possibilidade de uma resposta única à indagação que é literatura?”; a seu ver, a arte literária caracteriza-se por um “sinfronismo” (“coincidência espiritual de estilo, de módulo vital, entre o homem de uma época e os de todas as épocas, dos próximos ou os dispersos no tempo e no espaço”), por sua função lúdica, por ser evasão, por ser compromisso, por traduzir ânsia de imortalidade[6].


[1] Aristóteles, Poética, Ed.cit., p.67.[2] Alfonso Reyes, La Crítica em la Edad Ateniense, México, El Colegio de México [1941], p.261.[3] A esse propósito, ver: Raul H. Castagnino, op. Cit., com boa bibliografia; Charles Du Bos, Qu’est-ce que la Littérature?, Paris, Plon [1945], da qual há tradução portuguesa com o título de O que é a Literatura?, Lisboa, Morais, 1961; Jean-Paul Sartre, “Qu’est-ce que la Littérature”, in Situations, II, Paris, Gallimard, 1948; João Gaspar Simões, Natureza e Função da Literatura, Lisboa, Sá da Costa [1948]; New Literary History, n° cit.[4] Tzvetan Todorov, New Literary History, n° cit., p.8.[5] Charles Du Bos, op. cit., pp. 89, 90 e 101.[6] Raul Castagnino, op. cit., PP. 122 et passim.




Referências Bibliográficas
AMARAL, Emília. et. all. Novas Palavras: Literatura, Gramática, Redação e Leitura. Vol. 1. São Paulo: FTD, 1997.
AMARAL, Emília. et. all. Novas Palavras: Literatura, Gramática, Redação e Leitura. Vol. 2. São Paulo: FTD, 1997.
 BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 2006.
CÂNDIDO, Antônio. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007.
D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto I. São Paulo: Ática, 1995.
GOLDSTEIN, N. Versos, sons e ritmos. São Paulo: Ática, 2007.
MOISÉS, M. A criação literária: prosa I. São Paulo: Cultrix, 2003.
 _________. A criação literária: poesia. São Paulo: Cultrix, 1998.
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