19 de agosto de 2012

PROSA

A prosa orienta-se até certo pondo em sentido contrário ao da poesia. Já vimos que, por sua própria essência literária, a poesia e a prosa se aparentam numa série de aspectos. Destes, o mais importante é aquele que caracteriza a própria literatura: expressão dos conteúdos da ficção, da imaginação, numa palavra, o subjetivismo. Na poesia, como acabamos de ver, o sujeito, o “eu”, volta-se para dentro de si, fazendo-se ao mesmo tempo espetáculo e espectador. A prosa, todavia, inverte completamente essa equação.

Com efeito, a prosa é a expressão do “não-eu”, do objeto. Por outras palavras: o sujeito que pensa e sente está agora dirigido para fora de si próprio, buscando seus núcleos de interesse na realidade exterior, que assim passa a gozar de autonomia em relação ao sujeito. A este, interessam agora os outros “eus”[1] e as coisas do mundo físico, como objetos alheios cuja natureza vale a pena desvendar. Está claro que a postura do “eu” diante do mundo exterior continua a ser radicalmente subjetivista, pela condição mesma de se tratar dum comportamento estético-literário. Portanto, a base permanece subjetivista, pessoa, pois o “eu” é que vê a realidade; a visão do mundo continua egocêntrica.

Entretanto, o espetáculo mudou, os focos de atração são outros; o espetáculo passa a ser o que está fora do “eu”, no plano físico, e os motivos de interesse deslocam-se do “eu” para o “não-eu”, formado dos demais “eus” e da Natureza em suas diversificações várias (o mundo animal, o mineral, o vegetal). Assim, os motivos exteriores, que antes participavam apenas com sua carga subjetiva ou como projeção do “eu”, aparecem na qualidade de ponto para onde converge a sensibilidade do artista. O resultado só pode ser diferente daquele que a poesia alcança: equação objetiva, visto que o pólo reside no objeto e não no sujeito.

Desse modo, a poesia seria duplamente subjetiva, enquanto a prosa seria subjetiva nos seus fundamentos e objetiva no seu... objeto. Em consequência da “objetividade”, a prosa admite o influxo da razão ordenadora e equilibradora, simultaneamente com a sensibilidade. Daí que o mundo exterior (contrariamente ao mundo interior do poeta) se nos apresente organizado dentro duma lógica, não a lógica discursiva, mas a lógica estética. Quer dizer: a inteligência e a consciência, antes convidadas a intervir tão somente no momento da criação poética, constituem agora forças decisivamente atuantes no modo como o ficcionista reconstrói o mundo à sua maneira, embora segundo uma coerência lógica específica da arte.


Compreende-se, assim, que a metáfora permaneça como o meio de expressão da mundividência do escritor. Todavia, trata-se duma metáfora de efeito retardado, uma vez que sua polivalência tão-somente se manifesta quando a leitura atinge o epílogo do texto. Encarada isoladamente, ou ao longo do fluxo da leitura, semelha ostentar univalência, que se origina do fato de a metáfora prosística decorrer da observação do mundo objetivo, cujos componentes não admitiriam expressões ambíguas, sob pena de perder seu caráter “preciso”.

A linguagem da prosa narra, descreve, ou seja, fixa os aspectos visíveis e históricos da realidade, em suma, põe ênfase na denotação: isolada, a metáfora prosística é denotativa, e somente adquire conotação quando, no fim do texto, entra em confronto com as demais metáforas. Denotativa à primeira vista, a linguagem da prosa é mediatamente conotativa, ao contrário da linguagem poética, que é mediata e imediatamente conotativa. Quanto à sintaxe, “na prosa a estrutura sintática destaca-se tanto mais agudamente, faz-se tanto mais importante e eficaz quanto mais decididamente se afasta o prosador do estilo poético e do estado de espírito lírico”. Por isso, quando “a forma interior, isto é, o sentir e a inspiração dum autor, vai na direção do lógico, eo ipso apóia sua expressão idiomática no lado sintático”[2].





[1] Henri Bonnet, op. cit, p.118.

[2] Karl Vossler, op. cit., p.247.


Referências Bibliográficas
AMARAL, Emília. et. all. Novas Palavras: Literatura, Gramática, Redação e Leitura. Vol. 1. São Paulo: FTD, 1997.

AMARAL, Emília. et. all. Novas Palavras: Literatura, Gramática, Redação e Leitura. Vol. 2. São Paulo: FTD, 1997.
BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 2006.
CÂNDIDO, Antônio. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007.
D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto I. São Paulo: Ática, 1995.
GOLDSTEIN, N. Versos, sons e ritmos. São Paulo: Ática, 2007.
MOISÉS, M. A criação literária: prosa I. São Paulo: Cultrix, 2003.
 _________. A criação literária: poesia. São Paulo: Cultrix, 1998.
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