26 de julho de 2012

O que é Morfologia?

Morfologia significa, com base nos seus elementos de origem, o ‘estudo da forma’. Mas o que tal definição nos diz acerca de o que vem a ser morfologia? Não muito, como veremos.

Primeiramente, o termo forma pode ser tomado, num sentido amplo, como sinônimo de plano da expressão, em oposição a plano do conteúdo. Nesse caso, a forma compreende dois níveis de realização: os sons, destituídos de significado, mas que se combinam e formam unidades com significado; e as palavras, as quais por sua vez, têm regras próprias de combinação para a composição de unidades maiores[1]. Mas a palavra não precisa ser interpretada, necessariamente, como a unidade fundamental para representar a correlação entre o plano da expressão e o do conteúdo. Podemos atribuir esse papel ao morfema. Temos aqui, por conseguinte, duas unidades distintas como possíveis centros de interesse de nossos estudos de morfologia.


A diferença no tocante à unidade em que centra o estudo morfológico – o morfema ou a palavra – redunda de maneiras também diferentes de focalizar a morfologia. De modo muito geral, e correndo o risco de uma simplificação exagerada, podemos dizer que a noção de morfema está relacionada com o estudo das técnicas de segmentação de palavras em suas unidades constitutivas mínimas, ao passo que os estudos que privilegiam a noção de palavra preocupam-se com o “modo pelo qual  estrutura das palavras reflete suas relação com outras palavras em construções maiores, como a sentena, e com o vocabulário total da língua” (Anderson, 1992: 7; 1988: 146).

Um segundo problema com relação à definição tomada do étimo, e mesmo com relação a definições que possamos extrair de dicionários, é serem elas vagas. Ao definirmos morfologia como o ramo da gramática que estuda a estrutura das palavras, por exemplo, não fazemos referência ao tipo de interesse que temos nos dados, tampouco ao tipo de dados que nos interessam. Morfologia é um termo que não tem a mesma realidade de uma pedra ou de uma árvore: pressupõe determinado modo de se conceber o que sejam linguagem e língua, e somente como parte desse quadro mais amplo – isto é, de uma teoria – é que podemos compreender que tipo de estudo está sendo levado em conta. Até mesmo se precisamos de ter na gramática algo que chamemos morfologia.

Um indivíduo que sabe sua língua é aquele que alcançou o estágio (relativamente) estável da faculdade da linguagem. Esse estágio estável é também chamado conhecimento linguístico. Ao se focalizar uma língua como conhecimento linguístico, passa-se também a concebê-la como um fenômeno individual e não social. A competência gramatical, ou conhecimento da gramática, ou sistema computacional, ou língua-I é exclusivamente humano. É ele que permite ao indivíduo criar e compreender um número infinito de frases de sua língua. Uma parte do conhecimento que temos acerca das palavras de nossa língua está representada sob o rótulo morfologia: é o que pode ser captado como generalizações acerca da estrutura das palavras. O que é imprevisível será tratado sob o rótulo léxico.

A Morfologia é o ponto de maior controvérsia no estudo de linguagem natural. Especialistas se debatem tomando posições que vão desde aquelas que consideram a Morfologia como o principal componente do estudo gramatical, até aquelas que desconsideram totalmente o nível morfológico na construção de uma teoria da gramática. Frequentemente definida como o componente da Gramática que trata da estrutura interna das palavras, nos conduz à interrogação: o que é uma palavra?[2] A existência de palavras é assumida como uma realidade pela maioria de nós, lingüistas ou não. No entanto, não é simples definir o que é uma palavra. Na linguística, como em qualquer ciência, um dos problemas básicos é identificar critérios para definirmos as unidades básicas de estudo.

Palavra é a unidade mínima que pode ocorrer livremente. Uma vez assumida essa definição de palavra, podemos distinguir vários elementos que carregam exatamente o mesmo significado, mas que não têm o mesmo status gramatical. Assim, um pronome clítico, como lhe, embora possa carregar o mesmo significado que um pronome, não pode ser caracterizado como uma palavra, uma vez que não atinge os critérios sintáticos anteriormente definidos. Por exemplo, o pronome clítico o “terceira pessoa singular masculino” (Maria o viu na feira) não pode ocorrer como resposta a uma pergunta e não pode servir como sujeito de uma sentença. Não é, portanto, uma palavra. Mas o pronome ele, embora carregue o mesmo significado, isto é, “terceira pessoa singular masculino”, qualifica-se como uma palavra, pois pode ocorrer isoladamente e em várias posições sintáticas. No português brasileiro vernáculo, ele ocorre em qualquer posição argumental (Ele me viu, Eu vi ele, José deu um livro para ele).

Uma vez definido o que é uma palavra, temos definida a unidade máxima da morfologia. O que seria a unidade mínima deste componente da Gramática? As unidades mínimas da Morfologia são os elementos que compõem uma palavra. A Morfologia tem seus próprios elementos mínimos. O conhecimento desses elementos é o que nos permite entender o significado de palavras que nunca ouvimos antes. Ao nos depararmos com uma palavra como nacionalização, mesmo sem nunca termos ouvido esta palavra, podemos descobrir o que ela significa se soubermos o significado de nação, “pátria”, e o significado dos elementos que derivam novas palavras em português: al, “elemento que transforma um substantivo em adjetivo”, izar, “elemento que transforma um adjetivo em verbo” e ção, “elemento que transforma verbo em substantivo”[3]. Assim, ao adicionarmos nação e al, criamos o adjetivo nacional e, ao adicionarmos izar, temos o verbo nacionalizar. Finalmente, ao somarmos ção com nacionalizar, formamos o nome (ou substantivo, segundo a terminologia da gramática tradicional) nacionalização[4]. A palavra nacionalização significa ato de nacionalizar. Seu significado é derivado do significado das partes que compõem esta palavra. Os elementos que carregam significado dentro de uma palavra são rotulados de morfemas e são estes a unidade mínima da morfologia. Apesar de muitas pessoas afirmarem que a palavra é a unidade mínima que carrega significado, o morfema que o é.

Para o estruturalismo, uma das preocupações da Linguística é tentar explicar como reconhecemos palavras que nunca ouvimos antes e como podemos criar palavras que nunca foram proferidas antes. A resposta é que nosso conhecimento dos morfemas da língua é o que nos dá esta capacidade. Assim, o problema central da Linguística para o quadro teórico estruturalista é identificar os morfemas que compõem cada língua falada no mundo; a Morfologia, portanto, é de crucial importância para o estruturalismo[5]. A palavra havia sido o fundamento da gramática tradicional. Mas como definir essa unidade? Despojada da representação escrita – vista como “meramente um dispositivo externo” (Bloomfield, 1933:294) que reproduziria imperfeitamente a fala de uma comunidade (id.: 293) –, a delimitação da palavra tornava-se difícil. Não coincidia, na maioria das vezes, com um elemento mínimo de som e significado, e sua característica distintiva passava a ser a possibilidade de ser enunciada em isolado. Nada de muito interessante.

Os problemas com a noção de palavra apontada pelos estruturalistas decorriam, em grande parte, de a definirem como uma forma, i.e., como “um traço vocal recorrente que tem significado” (Bloomfield, 1926: 27). Isto implicava haver a necessidade da utilização de critérios fonológicos indissociados de critérios gramaticais para a sua depreensão. Fonologicamente uma sequência como deixei-me, por exemplo, é uma palavra, uma vez que me equivale a uma sílaba átona em relação ao verbo e não pode, sozinho, funcionar como enunciado. Gramaticalmente, porém, deixe-me equivale a duas palavras: me é um pronome em função de objeto e pode ser mudado de posição para antes do verbo, o que não acontece com simples sílabas.

Para evitar que enunciados diferentes pudessem ser segmentados de maneiras diversas e que noções oriundas dos estudos tradicionais fossem associadas à análise gramática, a linguística do século XX retirou da noção de palavra, em favor da noção de morfema, a ênfase que tinha nos séculos anteriores. O morfema tornou-se a unidade básica da gramática e, por conseguinte, da morfologia – agora transformada em morfologia baseada em morfemas. Desse modo, a morfologia da maior parte do século XX passou a ser a análise sintagmática dos vocábulos[6].

Tal mudança correspondeu à adoção de um modelo de análise gramatical diferente daquele herdado da tradição greco-latina. O estruturalismo norte-americano estabeleceu um método para identificar que partes específicas do material fonológico de uma forma complexa expressavam as diferentes partes de um significado também complexo. As unidades som e significado assim depreendidas eram os elementos mínimos ou itens da análise.

Cada morfema é um átomo de som e significado, isto é, um signo mínimo. Segundo tal perspectiva, a morfologia é o estudo desses átomos (a alomorfia) e das combinações em que podem ocorrer (a morfotática) – i.e., a morfologia é o estudo dos morfemas e de seus arranjos[7].



[1] Esta é a visão apresentada, por exemplo, em Lyons (1968;53-54).
[3] Izar, dado aqui como uma única unidade para fins de simplificação, pode ser subdividido em unidades menores: iz “verbalizador”, a “vogal temática da primeira conjugação” e r “infinitivo”.
[4] Obviamente temos aí aplicações de regras fonológicas, uma vez que nação + al é nacional e não *naçãoal e nacionalizar + ção é nacionalização e não *nacionalizarção. Sobre regras fonológicas, ver o capítulo fonologia neste volume e sobre a relação entre Fonologia e Morfologia, ver Mohanan (1986) e Kadger, Van Der Hulst & Zonneveld (1999), que apresentam visões distintas e oferecem mais referências sobre o assunto.
[5] Para um maior conhecimento da Morfologia do português, ver Mattoso Câmara (1970), Sandmann (1992), Silva & Koch (1986), e Pontes (1972). Note-se que esta pequena lista não representa uma lista exaustiva do assunto. Os volumes indicados constituem-se em referências importantes que podem propiciar o conhecimento de outras obras sobre o mesmo assunto.
[6] Estamos usando indistintamente os temos palavra e vocábulo.
[7] Bloomfield (1933: 163): “Os arranjos significativos de formas numa língua constituem sua gramática”. E ainda (id. 163ss): “As formas lingüísticas podem apresentar quatro tipos de arranjos: ordem, modulação, modificação, fonética, seleção.

[2] A controvérsia sobre a noção de palavra é antiga dentro da linguística. Para um entendimento mais claro desta questão ver Bloomfield (1933), Stockwel, Bowen & Silva-Fuenzalida (1956), Anderson (1992) e Aronoff (1994). Esses textos que inauguraram certas correntes de argumentação vão servir de porta de estrada para um maior aprofundamento sobre o assunto.



Referências Bibliográficas

AMARAL, Emília et.al. Novas Palavras, Literatura, Gramática, Redação e Leitura. 2° Grau. Editora FTD. São Paulo. 1997.
BENTES, Anna Christina e Mussalim, Fernanda (org.). Introdução À Linguística, Domínios E Fronteiras. 6ª edição. Editora Cortez. São Paulo. 2006.
CARONE, Flávia de Barros. Morfossintaxe. 9ª edição. Editora Parma. São Paulo. 2004.
CEREJA, William Roberto e MAGALHÃES, Thereza Cochar. Gramática Reflexiva. Texto, Semântica E Interação. Editora Atual. São Paulo. 2005.
FARACO e MOURA. Gramática. Editora Ática. São Paulo. 1998.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio Eletrônico versão 5.12. Positivo Informática: 2004
FERREIRA, Mauro. Aprender E Praticar Gramática. 2° Grau. Editora FTD. São Paulo. 1992.
JÚNIOR, Joaquim Mattoso Câmara. Estrutura Da Língua Portuguesa. 37ª edição. Editora Vozes. Rio de Janeiro, 2005.
KOCH, Ingedore Villaça. Linguística Aplicada Ao Português: Morfologia. 15ª edição. Editora Cortez. São Paulo. 2005.
MACAMBIRA, José Rebouças. Português Estrutural. 4ª edição. Editora Pioneira. São Paulo. 1998.
PASCHOALIN, Maria Aparecida; SPADOTO, Neuza Terezinha. Gramática, Teoria e Exercícios. Editora FDT. São Paulo. 1996.
ROSA, Maria Carlota. Introdução À Morfologia. Editora Contexto. São Paulo. 2005.

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