ANTES
DA TORRE DE BABEL*
Os 3 mil idiomas falados hoje no mundo
podem ter a mesma origem. Na busca dessa lingua-mãe, os pesquisadores descobrem
semelhanças incríveis que talvez não sejam coincidências.
Recolhido a seus aposentos numa certa
noite do final do século VII a.C., Psamético, um dos últimos faraós do Egito,
que reinou de 664 a 610 a.C., refletia sobre as línguas que os homens falavam.
Sua riqueza e diversidade, as semelhanças e as diferenças entre as palavras, as
pronúncias, as inflexões de voz, tudo o fascinava — principalmente a idéia de
que essa multiplicidade tinha uma origem comum, uma língua mãe falada por toda
a humanidade num tempo muito remoto, como afirmavam as lendas da época. O faraó
imaginou então uma experiência engenhosa e cruel. Convencido de que, se ninguém
ensinasse os bebês a falar, eles se expressariam naquele idioma original,
determinou que dois irmãos gêmeos fossem tirados da mãe logo ao nascer e
entregues a um pastor para que os criasse. O pastor recebeu ordens severas, sob
pena de morte, de jamais pronunciar qualquer palavra na presença das crianças.
Quando completaram 2 anos, o faraó
mandou que se deixasse de alimentá-las, na suposição de que a pressão da fome
faria com que pedissem comida em sua "língua natural". Não se sabe
bem o que aconteceu, mas tudo indica que o pastor, movido pela compaixão, não
fez exatamente o que lhe havia sido ordenado. Pois o inverossímil relato
enviado ao faraó informava que um dos meninos, faminto, havia pedido pão em
cíntio, idioma falado antigamente na região que viria a ser a Ucrânia, na União
Soviética. Assim, satisfeito com o desfecho da impiedosa pesquisa, Psamético
decretou que o cíntio era a língua original da humanidade. Por incrível que
pareça, a experiência seria repetida dezenove séculos mais tarde. O idealizador
foi o rei germânico Frederico II (1194-1250), que pelo visto não se convenceu
das conclusões do faraó. Certamente vigiado mais de perto, o experimento
resultou no inevitável: os dois gêmeos morreram.
De Psamético I aos dias de hoje,
passando por Frederico II, muitos outros homens igualmente curiosos se
perguntaram qual teria sido e como seria possível reviver o idioma do qual
brotaram todos os demais. Essa indagação se transformou modernamente numa área
de pesquisa de ponta em Lingüística, a ciência que estuda a evolução das
línguas, suas estruturas e possíveis inter-relações no quadro histórico e
social. Os estudos viriam confirmar a crença dos antigos. Segundo o lingüista
Cidmar Teodoro Pais, da Universidade de São Paulo, a comparação entre as várias
línguas do planeta, tanto as ainda faladas quanto as já desaparecidas, revela
efetivamente algumas características comuns que apontam para a possível
existência de uma língua primeira, mãe de todas. Nesse ponto, a Lingüística
parece se afinar com as mitologias que descrevem a dispersão das línguas pelo
mundo.
A mais conhecida delas é a história
bíblica da Torre de Babel. Segundo o Antigo Testamento, a multiplicação das
línguas foi um castigo de Deus à pretensão dos homens de construir uma torre
cujo topo penetrasse no céu. As lendas chinesas contam que a divisão da língua
original fez com que o universo "se desviasse do caminho certo". Na
mitologia persa, Arimã, o espírito do mal, pulverizou a linguagem dos homens em
trinta idiomas. E um dos livros sagrados dos maias, o Popol Vuh, lamenta:
"Aqui as línguas da tribo mudaram —
sua fala ficou diferente. (...) Nossa língua era uma quando partimos de Tulán.
Ai! Esquecemos nossa fala".
Hoje muitos lingüistas estão
empenhados em passar da lenda à verdade histórica, mas a tarefa é de extrema
dificuldade. O exercício da Lingüística como ciência, por sinal, está longe de
ser uma atividade simples ou compensadora. Ao contrário, lingüistas
freqüentemente passam anônimos pelo mundo, ao contrário de outros escavadores
do passado humano, como os arqueólogos e paleontólogos. Grandes nomes da
Lingüística deste século, os franceses Ferdinand de Saussure, Émile Benveniste
e o americano Noam Chomsky são ilustres desconhecidos para o público leigo.
"Definitivamente", resigna-se o lingüista Flávio di Giorgi, da
Universidade Católica de São Paulo, "esta ciência que se faz debruçado
sobre manuscritos antigos, inscrições ou reconstituições de línguas não tem
qualquer vocação para ser popular."
Para quem gosta, porém. é um prato
cheio. "Já me diverti muito estudando Lingüística", conta Teodoro
Pais, um professor de óculos de lentes grossas, fala mansa e hábitos metódicos,
no ramo há 30 de seus 50 anos de vida. Afinal, os atuais 5 bilhões de seres
humanos se comunicam recorrendo a um estoque de cerca de 3 mil línguas
espalhadas pelos quatro cantos do mundo. Essas, mais outros milhares já
esquecidas que deixaram algum tipo de registro escrito, foram agrupadas em doze
famílias lingüísticas importantes e cinqüenta menos importantes.
Essas duas grandes arrumações
familiares aparentemente nada têm em comum — e eis aí a suprema dificuldade dos
pesquisadores: eles farejam semelhanças onde o que salta aos olhos são
diferenças. As buscas, contudo, têm o estímulo das barreiras já derrubadas.
Quem diria, por exemplo, que há algum parentesco, embora remoto, entre o
português e o sânscrito, uma língua falada na Índia há milhares de anos, e
ainda a sua versão moderna, o hindi? E, no entanto, o parentesco existe.
Descobriram os lingüistas que esses
idiomas descendem de um mesmo e único tronco, o indo-europeu, pertencendo
portanto à grande família das línguas indo-européias que inclui também o grego,
o armênio, o russo, o alemão, entre muitas outras. Hoje, aproximadamente a
metade da população mundial tem como língua nativa um idioma dessa família. Foi
justamente a descoberta do parentesco entre o sânscrito e as línguas européias,
no século XVIII, que fez nascer a Lingüística histórica, dedicada a investigar
essas similaridades. A tese da origem comum foi proposta em 1786 por Sir
William Jones, um jurista inglês cujo passatempo era estudar as culturas
orientais. A partir de então, os lingüistas europeus passaram a se dedicar a
duas tarefas: uma, refazer passo a passo a árvore genealógica dessa família,
trilhando a história de sua evolução, outra, reconstituir a língua perdida que
dera origem a todas, o indo-europeu. Esse trabalho não se faz às cegas, ou por
ensaio e erro. A pesquisa percorre o caminho aberto pelas leis lingüísticas,
resultantes de outros estudos, que mostram como os sons e os sentidos das
palavras evoluem com o tempo, promovendo a transformação das línguas. Essas
leis são estabelecidas a partir de comparações entre palavras. Por exemplo, do
latim lacte e nocte vieram as formas leite e noite. Comparando-se os termos,
percebe-se que o "c" das palavras em latim virou "i" nos
vocábulos em português. No século passado, o trabalho dos lingüistas se apoiou
fortemente numa lei formulada em 1822 pelo alemão Jacob Grimm (1785-1863), mais
conhecido pelos contos de fadas que escreveu com seu irmão Wilhelm, entre os
quais Branca de Neve e os sete anões.
A lei de Grimm afirmava ser possível
prever como alguns grupos de consoantes se modificariam com o tempo nas línguas
indo-européias. Entre outras coisas, ele dizia que uma consoante forte ou
sonora (pronunciada fazendo-se vibrar as cordas vocais) tendia a ser
substituída por sua equivalente fraca ou surda (pronunciada sem vibração das
cordas vocais). O "b" e o "p"constituem um par desse tipo,
assim como o "d" e o "t". "B" e "d "
são fortes, "p" e "t" são fracas, como se pode comprovar,
pronunciando-os com a mão na garganta. Com base nessas leis, foi possível
mostrar, por exemplo, que a forma dhar em sânscrito, que significa puxar,
trazer, originou o inglês draw, o alemão tragen, o latim trahere e o português
trazer, todos com significado semelhante. O "d" da palavra em
sânscrito virou "t" nas outras línguas. Pode-se concluir ainda que a
palavra em inglês evoluiu menos que nas demais, pois se manteve fiel ao som
original do sânscrito.
Os lingüistas puderam assim
"estabelecer um modelo confiável das relações familiares entre as
línguas", conta o paulista di Giorgi, "construindo um modelo bastante
aceitável do que teria sido a língua ancestral — o proto-indoeuropeu." O
que se ambiciona, porém é uma descoberta muito maior. Dispondo das
reconstituições dos ancestrais de grande parte das famílias mais importantes,
os lingüistas tentam achar relações entre as próprias protolínguas. O primeiro
e maior obstáculo é justamente o material de que dispõem. Apesar de resultarem
de cuidadosa montagem científica, as protolínguas não passam de modelos, pouco
mais que sombras do que terão sido as línguas antigas. Algo como um dinossauro
de museu em relação ao bicho verdadeiro.
"Nesse ponto, a análise avança com base na cultura, pois não se dispõem
mais de documentos escritos", explica Teodoro Pais, da USP, que
conhece sânscrito e gostava de trocar cartas com os colegas em
proto-indo-europeu. Toda língua produz e reflete cultura e não é à toa que,
fundamentados nas palavras reconstituídas da protolíngua, os pesquisadores
podem inferir com razoável margem de confiança os hábitos do povo que a falava.
Com esses dados é possível construir pontes até outros grupos aparentemente não
relacionados. Por exemplo, tanto nas línguas indo-européias quanto no grupo
semítico, as palavras homem e terra originalmente se confundem. Em hebraico,
são respectivamente adam e adamah, ambas derivadas de uma raiz comum em proto-semítico.
Em proto-indo-europeu, a palavra
dheghom tem os dois significados. A parte final originou o latim homo (homem) e
humus (terra, solo). Assim, embora não haja parentesco etimológico algum entre
as palavras semíticas e indo-européias, é clara a semelhança quanto à maneira
de pensar e classificar o mundo entre as populações de ambos os grupos
lingüísticos. As mais recentes descobertas da Arqueologia e até da Genética
conduzem à mesma idéia: é possível agrupar as grandes famílias em famílias
ainda maiores, um avanço formidável na busca da língua-mãe. Há mais de vinte
anos, os lingüistas russos Vladislav M. Illich Svitch e Aron Dolgopolsky
propuseram que o indo-europeu, o semítico e a família das línguas dravídicas da
Índia poderiam fazer parte de uma superfamília, chamada então nostrática. Na
época, o trabalho foi encarado com desconfiança. Depois, ganhou alguma
aceitação nos meios científicos. Há pouco, enfim, uma descoberta da Genética
parece ter dado nova projeção ao trabalho dos soviéticos.
A partir de análises de grupos
sangüineos de várias populações, a equipe do geneticista Allan C. Wilson, da
Universidade da Califórnia. em Berkeley, concluiu que há um grande parentesco
genético entre os falantes das línguas indo-européias, semíticas e dravídicas.
Isso quer dizer que, ocupando uma vastíssima porção do planeta, da Ásia às
Américas, eles têm mais em comum entre si do que, digamos, com os japoneses ou
os esquimós. Essa descoberta coincide de forma espantosa com a teoria da
superfamília nostrática. Em outra frente, pesquisas arqueológicas e
lingüísticas estão finalmente determinando o local de origem do
proto-indo-europeu-um dos objetivos dos lingüistas desde o século passado.
Até os anos 40, os pesquisadores
acreditavam que o berço do indo-europeu estava situado no norte da Alemanha e
da Polônia. Essa teoria, sustentada por deduções bastante ingênuas, foi usada
nada ingenuamente pelos nazistas para confirmar sua teoria de que a raça tida
como pura dos arianos surgira ali mesmo. Os lingüistas imaginavam que, se fosse
possível estabelecer um pequeno vocabulário comum à maioria da línguas
indo-européias, estariam diante de algumas palavras localizadoras,
sobreviventes do proto-indo-europeu, em cuja terra natal seriam ainda faladas.
Uma dessas tentativas estabeleceu três palavras localizadoras — tartaruga, faia
(uma árvore) e salmão. O único lugar onde todas elas podiam ser encontradas era
uma área da Europa Central entre os rios Elba, Oder e Reno, na Alemanha, de um
lado, e o Vístula, na Polônia, de outro. Ali havia salmões, tartarugas e faias.
Não havia tartarugas ao norte da fronteira alemã, faias a leste do Vístula nem
salmões a oeste do Reno. O método acabou desacreditado, pois muitas das
palavras localizadoras estão sujeitas a mudanças de sentido, não sendo portanto
instrumentos confiáveis.
As pesquisas mais recentes afirmam que
o proto-indo-europeu era falado há cerca de 6 mil anos na Ásia e não na Europa
Central. Dois trabalhos, um do americano Colin Renfrew, outro dos soviéticos
Thomas Gamkrelidze e V.V. Ivanov, concordam ao apontar o berço do indo-europeu
como o planalto da Anatólia, uma região que vai da Turquia à República da
Armênia, que faz parte da União Soviética. Dali, movidos pela busca de terras
férteis e de novos campos de caça, os indo-europeus migraram, há uns cinco
milênios, seja para a Europa, seja para a Ásia. A corrida à procura da
língua-mãe está apenas começando, mas desde já nessa aventura científica não
faltam algumas descobertas insólitas.
Uma delas é a incrível semelhança de
palavras entre as línguas indígenas da América pré-colombiana e idiomas falados
pelos povos do Mediterrâneo e Oriente Médio. Por exemplo, os índios araucanos
do Chile usam a mesma palavra que os antigos egípcios, anta, para designar o
Sol e a mesma palavra que os antigos sumérios, bal, para machado. A palavra
araucana para cidade é kar, semelhante a cidade em fenício, que é kart. Há
mais: a palavra maia thallac, que designa "o que não é sólido", é
semelhante a Thallath, o nome da deusa do caos na antiga Babilônia.
Curiosamente, thallac lembra ainda thalassa, mar em grego, e Tlaloc, o deus
asteca da chuva. Shapash, o deus-sol dos fenícios, é também o deus-sol dos
índios klamath, no Oregon, Estados Unidos. Essas misteriosas semelhanças
escapam a qualquer tentativa de classificação. Mas, como disse certa vez Albert
Einstein, o mistério é a fonte de toda verdadeira ciência. Desde que, para
resolvê-lo, não seja preciso negar comida a crianças, como fizeram um faraó
egípcio e um rei germânico.
Libido,
liberdade...
"Cada
palavra tem sua biografia particular", ensina o lingüista Flávio di
Giorgi. O estudos dessas biografias proporciona um conhecimento íntimo do
idioma e das contribuições que o enriqueceram.
Alguns exemplos em português:
•
Tufão vem do chinês tu fong, vento forte;
•
Crocodilo vem do grego krokos deilos, lagarto do Nilo;
•
Óbvio vem do latim ob, na frente, e vias, caminho. Elementar;
•
Xeque-mate vem do iraniano shahmat, o xá está morto.
*Esse texto foi integralmente extraído da Revista Superinteressante, n°033, 1990.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
SUPERINTERESSANTE.
Antes da Torre de Babel. Revista
Superinteressante. São Paulo, n° 033. 1990.
SAUSSURE,
Ferdinand de. Curso de Linguística Geral.
28ª Ed. São Paulo: Cultrix, 2.000.
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