O LÉXICO[1]
Quando dizemos que sabemos uma palavra de nossa língua, levamos em conta uma enorme quantidade de informações. Uma das tarefas da linguística é dar conta desse conhecimento, e essa tarefa não é fácil.
Um modo de representar o conhecimento que um falante tem de sua língua é propor que a morfologia interage com todos os outros níveis de representação. Uma parte (ou subcomponente) da morfologia, aquela que trata da derivação e da composição, interage com o léxico; outra, aquela que trata da combinação de radicais e propriedades morfossintáticas, interage com a sintaxe; e ainda a parte que focaliza a forma de palavra que resulta da flexão interage com a fonologia (vide Spencer, 1991: 422-459 – para um panorama acerca das diferentes visões).
A visão mais tradicional do léxico foi exposta na clássica obra de Bloomfield (1933:269):
"Uma descrição completa de uma língua listará toda forma cuja função não é determinada seja por estrutura, seja por um marcador; incluirá, consequentemente, um léxico, ou lista de morfemas, que indica a classe de formas de cada morfema bem como listas de todas as formas complexas cuja função seja de algum modo irregular."
Segundo tal proposta, o léxico é uma lista de irregularidades, de fatos imprevisíveis. Em outras palavras: faz-se uma lista daquilo que não pode ser captado (ou descrito) por uma regra, porque é excepcional de algum modo. O que pode ser apreendido por regras pertence à gramática.
Quando falamos em irregular, imprevisível, temos em mente a arbitrariedade do signo. Não há como prever que a sequência fônica peixe esteja associada, em português, ao significado que pode ser glosado como ‘tipo de animal que vive na água’. Não há regra que diga como associar sequências sonoras a significados. Mas não é exatamente qualquer palavra. Se tivéssemos algo como peixinho, por exemplo, e levando em conta os diminutivos em português, chegaríamos à conclusão de que peixinho é regular. Aliás, falar em diminutivos é mostrar que podemos estabelecer alguma generalização a respeito do vocabulário do português: aumentativos, agentivos...
Compreender o léxico como o lugar da irregularidade, do que é imprevisível, nos leva a considerar que contém palavras existentes na língua, mas não todas. Os requisitos necessários pedem, pelo menos, que sejam (v. Aronoff & Anshen, 1998):
a) palavras primitivas, que representam a arbitrariedade do signo, como PEIXE, PEDRA;
b) palavras complexas que apresentem alguma parte que não é reconhecida pelo falante: se um falante desconhece CAÇO ou uma regra que forme aumentativos em –oila, dificilmente reconhecerá CAÇOILA[2];
c) palavras cujo significado não é deduzível de sua estrutura, como AMÁVEL, por exemplo. Também serão incluídas no léxico expressões idiomáticas cujo significado não se segue de suas partes formadoras: chutar o pau da barraca (‘dizer tolices’), tirar uma pestana (‘dormir’) e assim por diante, como também formas flexionadas irregulares.
O léxico representa o conjunto de palavras que está disponível para a atuação das regras da morfologia. A morfologia lida, portanto, segundo esta visão, “com a estrutura interna das palavras complexas potenciais de uma língua” (Aronoff & Anshen, 1998: 237 – ênfase nossa). As palavras no léxico – ou lexemas ou, uma vez que pensamos numa lista, os itens lexicais – pertencem a classes abertas, isto é, a classes que, sincronicamente, podem admitir novos membros e apresentam significado lexical.
A grosso modo, léxico pode ser definido como o acervo de palavras de um determinado idioma. Em outras palavras, é todo o conjunto de palavras que as pessoas de uma determinada língua têm à sua disposição para expressar-se, oralmente ou por escrito. Podemos dizer que uma característica básica do léxico é sua mutabilidade, já que ele está em constante movimento. É só notarmos o fato de que algumas palavras se tornam arcaicas, enquanto outras são incorporadas, outras mudam seu sentido, e tudo isso ocorre de forma gradual e quase imperceptível. O sistema léxico de uma língua traduz a experiência cultural acumulada por uma sociedade através do tempo, ou seja, o léxico pode ser considerado como o patrimônio vocabular de uma comunidade lingüística através de sua história, um acervo que é transmitido de uma geração para a geração seguinte. O usuário da língua utiliza o léxico, esse inventário aberto de palavras disponíveis no seu idioma, para a formação do seu vocabulário, para sua própria expressão no momento da fala e para a efetivação do processo comunicativo. Assim, o vocabulário de um indivíduo caracteriza-se pela seleção e pelos empregos pessoais que ele faz do léxico. Quanto maior for o vocabulário do usuário, maior a possibilidade de escolha da palavra mais adequada ao seu intento expressivo[3].
Observe algumas palavras presentes na língua portuguesa que são provenientes de outros idiomas:
Termos Ibéricos | Termos Célticos | Termos Gregos | Termos Hebraicos |
Arroio | Cabana | Anjos | Aleluia |
Bezerro | Bico | Apóstolos | Amém |
Cama | Carpinteiro | Bíblia | Éden |
Esquerdo | Cerveja | Diabo | Serafim |
Termos Germânicos | Termos Sânscritos | Termos Chineses | Termos Japoneses |
Arreio | Açúcar | Nanquim | Biombo |
Anca | Gengibre | Chá | Gueixa |
Espeto | Rajá | Ganga | Quimono |
Sul | Nirvana | Tutão | Samurai |
Em definição do Dicionário Aurélio, léxico é:
1. Dicionário de línguas clássicas antigas.
2. Dicionário dos vocábulos us. por um autor ou por uma escola literária; léxicon.
3. Dicionário abreviado.
4. Dicionário.
5. O vocabulário de uma língua.
6. Lexical: análise léxica; família léxica. ~ V. análise —a e família —a.
[...] O léxico é composto de grande número de itens (itens léxicos), e cada um deles encerra informação sobre as características fonológicas, morfológicas, sintáticas e semânticas de uma palavra (melhor dizendo, de um lexema – ver adiante), de um morfema, ou ainda de uma expressão idiomática.
CARÁTER DO LÉXICO
Para compreender o papel do léxico dentro da gramática, consideremos o que significa saber uma língua. Para que alguém saiba uma língua, é necessário que domine (na prática) uma série de regras; assim, para saber português, é preciso saber que não se pronuncia um [o] (como em avô) no final de uma palavra se esta não for oxítona; ou seja, o que se ouve no final de Pedro é antes um [u]. É preciso também saber que se pode dizer escrevi, escreveu, escrevendo, escrevemos, mas não *escrevinha, *escrevemente, *escrevíssimo. Outra coisa que se pode aprender é que se pode dizer O livro caiu nesse buraco, mas não *Livro o caiu buraco nesse.
Todos esses conhecimentos são expressos por regras, ou seja, instruções gerais para a construção dos enunciados da língua portuguesa. Cada uma das três regras mencionadas vale para grande número de itens, desde que satisfaçam às condições expressas na própria regra, assim, a proibição de pronunciar [o] vale para qualquer vogal átona final de palavra; a proibição de acrescentar o sufixo –mente vale para qualquer forma de verbo; e a sequência *livro o é proibida por regras que estabelecem que o artigo deve vir sempre antes do substantivo, nunca depois dele. Justamente por se aplicarem a muitos itens, sendo estes definidos de maneira geral, é que se chamam regras.
Além desse tipo de conhecimento, constituído por regras mais ou menos gerais, saber uma língua também implica o conhecimento de grande número (vários milhares) de elementos individuais, cuja forma e significado não são governados por regras. É o caso, notadamente, das palavras da língua: além de conhecer as regras fonológicas, morfológicas, sintáticas e semânticas do português, precisamos conhecer a lista das palavras do português.
Nenhuma regra nos ajudará a saber o que significa, digamos, enólogo, É necessário conhecer a própria palavra (ou, o que é equivalente, os elementos constitutivos da palavra, pois esta se compõe de eno- mais –logo). E conhecer a palavra implica em conhecer sua pronúncia (começa com [e], depois vem um [n] etc.); suas propriedades morfossintáticas (pode ser núcleo de um sujeito, pode ocorrer depois de um artigo); e suas propriedades semânticas (designa uma pessoa que se ocupa do estudo ou da produção do vinho).
Lexema é um conjunto de palavras que diferem apenas quanto a morfemas flexionais.
[1] Procedemos
aqui a uma grande simplificação. O que efetivamente consta do léxico vara
bastante mesmo no campo de uma teoria. Para muitos autores na perspectiva
gerativa, parte da morfologia está no léxico. Para Anderson (1992), por
exemplo, o léxico representa também uma forma de conhecimento e, por
conseguinte, vai além da noção de lista. Assim, além do conhecimento da lista –
que inclui minimamente a existência do item lexical, por exemplo CAMA, sua
descrição fonológica [kama], seu significado, algo como ‘móvel que serve para
as pessoas se deitarem’, a característica sintática de ser um nome –, o léxico
inclui também “um sistema de regras, que são os modos de relacionar entre si as
palavras até o ponto em que essas relações são (ao menos parcialmente) sistemáticas
e, assim, parte de nosso conhecimento acerca das palavras” (Anderson, 1992:
182). Assumimos aqui a visão mais tradicional, que separa morfologia de léxico.
[2] Vaso
cilíndrico de barro ou de metal para cozinha; caçarola.
[3] Definição
extraída de Wikipédia, direção: http://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%A9xico
Referências Bibliográficas
AMARAL, Emília et.al. Novas Palavras, Literatura, Gramática, Redação e Leitura. 2° Grau. Editora FTD. São Paulo. 1997.BENTES, Anna Christina e Mussalim, Fernanda (org.). Introdução À Linguística, Domínios E Fronteiras. 6ª edição. Editora Cortez. São Paulo. 2006.
CARONE, Flávia de Barros. Morfossintaxe. 9ª edição. Editora Parma. São Paulo. 2004.
CEREJA, William Roberto e MAGALHÃES, Thereza Cochar. Gramática Reflexiva. Texto, Semântica E Interação. Editora Atual. São Paulo. 2005.
FARACO e MOURA. Gramática. Editora Ática. São Paulo. 1998.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio Eletrônico versão 5.12. Positivo Informática: 2004
FERREIRA, Mauro. Aprender E Praticar Gramática. 2° Grau. Editora FTD. São Paulo. 1992.
JÚNIOR, Joaquim Mattoso Câmara. Estrutura Da Língua Portuguesa. 37ª edição. Editora Vozes. Rio de Janeiro, 2005.
KOCH, Ingedore Villaça. Linguística Aplicada Ao Português: Morfologia. 15ª edição. Editora Cortez. São Paulo. 2005.
MACAMBIRA, José Rebouças. Português Estrutural. 4ª edição. Editora Pioneira. São Paulo. 1998.
PERINI, Mário. A Gramática Descritiva do Português. São Paulo: Ática 2000.
PASCHOALIN, Maria Aparecida; SPADOTO, Neuza Terezinha. Gramática, Teoria e Exercícios. Editora FDT. São Paulo. 1996.
ROSA, Maria Carlota. Introdução À Morfologia. Editora Contexto. São Paulo. 2005.
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