Cuidado
com os revizores
Luis
Fernando Verissimo
Todo
escritor convive com um terror permanente: o do erro de revisão. O revisor é a
pessoa mais importante na vida de quem escreve. Ele tem poder de vida ou de
morte profissional sobre o autor. A inclusão ou omissão de uma letra ou vírgula
no que sai impresso pode decidir se o autor vai ser entendido ou não, admirado
ou ridicularizado, consagrado ou processado.
Todo
texto tem, na verdade, dois autores: quem o escreveu e quem o revisou. Toda vez
que manda um texto para ser publicado, o autor se coloca nas mãos do revisor,
esperando que seu parceiro não falhe. Não há escritor que empregue palavras como,
por exemplo, “ônus” e “carvalho” e depois não fique metaforicamente de malas
feitas, pronto para fugir do país se as palavras não saírem impressas como no
original, por um lapso do revisor. Ou por sabotagem.
Sim,
porque a paranoia autoral não tem limites. Muitos autores acreditam firmemente
que existe uma conspiração de revisores contra eles. Quando os revisores não
deixam passar erros de composição (hoje em dia, de digitação), fazem pior: não
corrigem os erros ortográficos e gramaticais do próprio autor, deixando-o
entregue às consequências dos seus próprios pecados de concordância, das suas
crases indevidas e pronomes fora do lugar. O que é uma ignomínia.
Ou
será ignomia? Enfim, não se faz.
Pode-se
imaginar o que uma conspiração organizada, internacional, de revisores
significaria para nossa civilização. Os revisores só não dominam o mundo porque
ainda não se deram conta do poder que têm. Eles desestabilizariam qualquer
regime com acentos indevidos e pontuações maliciosas, além de decretos oficiais
ininteligíveis. Grandes jornais seriam levados à falência por difamações
involuntárias, exércitos inteiros seriam mobilizados por manuais de instrução
militar sutilmente alterados, gerações de estudantes seriam desencaminhadas por
cartilhas ambíguas e fórmulas de química incompletas. Os efeitos de uma revisão
subversiva na instrução médica são terríveis demais para contemplar.
Existe um exemplo histórico do que a revisão desatenta - ou mal intencionada - pode fazer.
Uma das edições da Versão Autorizada da Bíblia publicada na Inglaterra por iniciativa do rei James I, no século XVII, ficou conhecida como a “Bíblia Má”, porque a injunção “Não cometerás adultério” saiu, por um erro de impressão, sem o “não”. Ninguém sabe se o volume de adultérios entre os cristãos de fala inglesa aumentou em decorrência dessa inesperada sanção bíblica até descobrirem o erro, ou se o impressor e o revisor foram atirados numa fogueira juntos, mas o fato prova que nem a palavra de Deus está livre dos revisores.
Existe um exemplo histórico do que a revisão desatenta - ou mal intencionada - pode fazer.
Uma das edições da Versão Autorizada da Bíblia publicada na Inglaterra por iniciativa do rei James I, no século XVII, ficou conhecida como a “Bíblia Má”, porque a injunção “Não cometerás adultério” saiu, por um erro de impressão, sem o “não”. Ninguém sabe se o volume de adultérios entre os cristãos de fala inglesa aumentou em decorrência dessa inesperada sanção bíblica até descobrirem o erro, ou se o impressor e o revisor foram atirados numa fogueira juntos, mas o fato prova que nem a palavra de Deus está livre dos revisores.
A
mesma bíblia do rei James serve como um alerta (ou como o incentivo, dependendo
de como se entender a história) para a possibilidade que o revisor tem de
interferir no texto. O objetivo de James I era fazer uma versão definitiva da
Bíblia em inglês, com aprovação real, para substituir todas as outras traduções
da época, principalmente as que mostravam uma certa simpatia republicana nas
entrelinhas (como a Bíblia de Genebra, feita por calvinistas e adotada pelos
puritanos ingleses, e que é a única Bíblia da História em que Adão e Eva vestem
calções. Para isso, James reuniu um time dividido entre os que cuidariam do
Velho e do Novo Testamento, das partes proféticas e das partes poéticas, etc..
Especula-se que as traduções dos trechos poéticos teriam sido distribuídas entre
os poetas praticantes da época, para revisarem e, se fosse o caso, melhorarem,
desde que não traíssem o original. Entre os poetas em atividade na Inglaterra
de James I estava William Shakespeare. O que explicaria o fato de o nome de Shakespeare
aparecer no Salmo 46 – "shake" é a 46ª palavra do salmo a contar do
começo, "speare" a 46ª a contar do fim. Na tarefa de revisor, e
incerto sobre a sua permanência na História como sonetista ou dramaturgo,
Shakespeare teria inserido seu nome clandestina e disfarçadamente numa obra que
sem dúvida sobreviveria aos séculos. (Infelizmente, diz Anthony Burgess, em
cujo livro A mouthful of air a encontrei, há pouca probabilidade de esta
história ser verdadeira. De qualquer maneira, vale para ilustrar a tentação que
todo revisor deve sentir de deixar sua marca, como grafite, na criação alheia.)
Não
posso me queixar dos revisores. Fora a vontade de reuni-los em algum lugar,
fechar a porta e dizer “Vamos resolver de uma vez por todas a questão da
colocação das vírgulas, mesmo que haja mortos”, acho que me têm tratado bem.
Até me protegem. Costumo atirar os pronomes numa frase e deixá-los ficar onde
caíram, certo de que o revisor os colocará no lugar adequado.
Sempre
deixo a crase ao arbítrio deles, que a usem se acharem que devem. E jamais uso
a palavra “medra”, para livrá-los da tentação.
(VIP Exame, mar.
1995, p. 36-37. © by Luis Fernando Verissimo)
Fonte: Darlan Lula
Fonte das imagens:
http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/colunistas/cristovao-tezza/a-vinganca-dos-revizores-bd9ubxyl64r68x0anreiylnbi
http://comunicacao2010.blogspot.com.br/2010/02/classificacao-das-linguagens.html
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http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/colunistas/cristovao-tezza/a-vinganca-dos-revizores-bd9ubxyl64r68x0anreiylnbi
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